Recebi
um convite. Não veio em papel material mas logo o transformei pois
acredito e necessito da acumulação, não sei se acredito mas a
maior parte das vezes sinto que necessito. Demorei vários dias,
meses, semanas, a lê-lo e cada momento que passava ele ia ficando
mais pesando e quando li a última linha o início já tinha
apodrecido a tal ponto que escorria uma gosma que colava. Essa gosma
viscosa conheço-a bem e por afecto não a limpo. Também eu sou um
ser viscoso, viscoso por fatalidade e condição. É essa viscosidade
que me prende em casa, causando repugnância à vizinha da frente.
Viscosidade como resistência do fluído ao escoamento. Esse
movimento com o objectivo de sair ou abandonar determinado lugar
lembra-me logo daqueles que fogem, daqueles que rapidamente encontram
um buraco para se enfiar. Nunca fui assim, sempre demasiado picudo
para esses lugares, nunca tive essa visão aguçada de ponto de fuga.
Um corpo tem mais viscosidade quanto maior o seu atrito, como a
hiperacumulação que sofro e com que sempre me faz sentir imiscuída
e ao mesmo tempo sem lugar. As camadas, o pó, os papéis, as ideias,
os projectos, vão-se sobrepondo, misturando-se, criando uma espécie
de bolo alimentar mal-cheiroso e repugnante que deveria fazer o seu
caminho ao longo de uma estrada sinuosa. Falta-nos intestinos na
cabeça e por isso, esse bolo vai-se adensando, compactando até não
mais sair (parecido com uma couve-flor sem água). A minha história,
também pela minha (in)feliz condição, conta-se, então, pelo que
não se vê mas existe. Será como a relação do sim e o seu
contrário, entre a essência e a transcendência. A potência da
acção também é a não acção, senão seria a acção por
inteiro, perdendo a condição/característica/vestimenta da
potência. A potência de fazer é também não fazer como o gato que
está vivo ou está morto e afinal está vivo e está morto, as
possibilidades são todas possíveis e coexistem. Possibilidades
totais que levam à incerteza e à entropia que me faz sentir mais
pertença, que faço parte de uma natureza cosmológica. Contradição
(aparente) de ser e não-ser no mesmo espaço-tempo é uma forma
extrema de vida. E com isto recordei o meu convite vindo de uma
curadora famosa mas triste que encontrou o seu ponto de fuga na arte
hardcore e na fuga em si. Uma clássica que ainda acredita que arte
extrema tem que ver com esporra e sexo mas que no fundo é boazinha e
defende os artistas não monumentais como se fossem refugiados. Gosto
disso dela porque nunca gostei de fronteiras. Como ela, também tenho
esse dom de causar consequências e aceitei o convite. Só para lhe
mostrar que há várias artes extremas e apoiamos também a sua fuga
para as ilhas (?). Invejo-a pelo seu ponto de fuga que foi a fuga
talvez em barco para os Açores, mas mesmo em fuga quer traçar bem o
seu caminho mandando postas de atum aqui para a capital artística
portuguesa. Ontem fui a uma exposição composta por um objecto de
ferro forjado, pequeno, disforme e detestável. Com esse objecto à
partida simples, o artista conseguira falar e reflectir sobre a
morte, os povos ancestrais e a sua morte, a fome causada pela crise e
o caos deixado pelo FMI em Portugal. Fiquei fascinado e comecei logo
a pensar numa peça que representasse tudo aquilo que me
apoquentasse. Fiz listas, escrevi, li muito, pesquisei e não
consegui. Penso que é uma incapacidade minha pois abro a agenda
cultural e vejo muitas exposições, se calhar todas a falar de
vários assuntos numa só peça. Tenho uma debilidade e um defeito e
agora vejo como é patética a minha tentativa de adaptação. Sou
viscoso e tenho muito atrito interno que dificulta o escoamento
disse-me a interna no hospital mas ela estava com pressa e na verdade
ainda não tive condições de consultar um especialista
especializado. Mas o não conseguir materializar não necessariamente
significa que não existe. E aqui está o meu drama. Tenho tudo em
notas de rodapé que levam a outras notas de rodapé viciosamente
como em suspensão, numa linha precária. Como a ambiguidade é, na
boca do povo, a arte da suspensão, o meu ser e o meu trabalho (???)
é ambíguo. Ambíguo e imenso. “A imensidão é o movimento do
homem imóvel”, explicou-me o meu senhorio quando soube que eu
passava os dias em casa a olhar pela janela, imaginando que nada do
que via existia. Mas para ele a imobilidade não tenha nada de inútil
nem de improdutivo. Era só uma questão de movimento, de aceleração,
de física. Como se a imensidão fosse palpável e não tivesse nada
de metafísica. Interessa-me isso à medida que vou escrevendo. As
listas, ao invés de me ajudarem a estruturar a minha debilidade,
tomaram conta dos meus dias criando assim uma vida paralela que,
apesar de não vivida, era tão perfeita que começou a ocupar o
lugar da minha vida tão desordenada e ambígua. Essa organização
fictícia é um simulacro, uma representação artificial da
realidade onde eu me adaptei a viver. É uma espécie de simulacro de
ponto de fuga, como se fosse aquela estátuazinha de ferro forjado
que vira. É uma concepção ao revés, um trabalho do não. Uma
distorção, destruição do real, do que existe (?). É um projecto
quase fadado ao fracasso, mas sempre temos de ter em conta a
incerteza, as possibilidades, as ambiguidades. Será e é sempre um
processo em bruto, um trabalho contínuo, como aquele em que alguém
pelava batatas durante toda uma noite e ninguém comia. Algo assim.
Em forma de provocação e desculpa, simultaneamente, deixar-vos com
esta tentativa prévia e conscientemente condenada ao desastre,
absurda simulação mascarada de validade muda, de certa forma
(talvez) apenas para me continuar a orgulhar desta mania constante
que tenho de renascer depois de todos os fracassos.